Este blog relata o desenvolvimento o Projeto Suzart – Poética da Periferia,do Coletivo Eita!Ação Cultural em parceria com o Instituto Viva Taipas pela 2ª vez contemplado com o Programa de Valorização de Iniciativas Culturais – Vai da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. Em 2014 teremos muitas atividades: debates, oficinas para professores da rede pública de ensino, encontros artístico e circulação do espetáculo Mu'leke Mulelê, inspirado na obra de Valdiney Suzart, por Taipas e região.
Anjo encantado - Isac experimentando o Agogô de 4 notas - Foto: Abmael Henrique
Por Michelle Lomba
A
mulher, eis o elo da sociedade. A mãe.
Maternidade
latente na negra parteira que pari seu filho nesse mundo bandido para
sofrer preconceitos e ser tratado pior que um animal.
Ver
um negro na rua passando fome, um ser humano abandonado, sem
condições nem para morrer com dignidade é normal, natural. Ver um
branco, nem pensar um japonês, é uma aberração. Causa
estranhamento.
Que
ser humano é esse que mata, maltrata, pula, passa por cima de outros
seres humanos que afinal estão na rua atrapalhando a passagem.
Passagem essa que deve ser limpa e um ser humano / lixo que ocupa a
rua como moradia, banheiro, alimentação, relação, é visível e
invisível conforme convém.
Que
criança é essa que cresce sem alimento, sem educação, sem
acompanhamento médico, sem moradia, sem alegria, sem amor, sem
ninguém?
Criança
que vira/é lixo, luxo, prazer, lucro, mercadoria, palhaçaria e
pancadaria.
E
a criança que É criança?
Eis a precariedade da sociedade que não cuida de uma criança e que a
enxerga como ninguém.
Devaneios noturnos sobre os
“corpos marcados” na obra de Suzart
Parto da ideia que sou
meu corpo, tudo o que acontece a ele me acontece, tudo o que eu
sinto, sinto em meu corpo sinto em mim... Vivo inteira e o que
acontece em meu entorno acontece a mim e em mim...
Quando me sinto
oprimida, apertada, sufocada no transporte público que considero
caríssimo, é muito real e muito literal a sensação de imobilidade
que percebo em mim e nos outros corpos oprimidos que me acompanham
nessa jornada...
Quando passo por alguns
lugares e vejo as condições precárias de vida do local, novamente
essa sensação de imobilidade e impotência é real, está em mim...
eu corpo pulso numa indignação transbordante que fica implodida nas
minhas vísceras...
Quando olho o pagamento
que recebo para realizar atividades que mereceriam o triplo do que eu
ganho como trabalhadora... Quando faço um trajeto de duas horas para
chegar ao trabalho, sabendo que essa distância e o tempo dela seriam
encurtados caso o mesmo transporte que me custa caríssimo funcionasse de
acordo com o que seria justo dado seu preço... Quando escuto de meus
alunos histórias que jamais imaginei que crianças poderiam viver,
histórias capazes de desviar a dita sanidade de qualquer um... o
peso que me toma inteira é real...
A frustração de
tentar cuidar da própria saúde e não conseguir por não haver
meios de realizar procedimentos simples... A ideia de que é preciso
estar morrendo para ser visto, para ser cuidado... a sensação de
aperto no coração que dá quando preciso contar com a “sorte”
para não adoecer, pois se adoecer é mais provável que morra se
tiver que contar com os serviços públicos que pago através de meus
impostos...
Quando sinto o mal
trato que o mundo dá a mim e há milhões de outros seres humanos
que dividem esse espaço comigo... Eu corpo sofro enrijecimento dos
músculos tentando suportar e confrontar todas essas micro-violências
cotidianas...
Há quem olhe para
desgraças que considera piores que as suas para poder se sentir
menos injustiçado, penso que seja um raciocínio equivocado, pois o
fato de existirem desgraças piores que a sua não quer dizer que
você tenha que se conformar em ser massacrado todo o tempo, ainda que
de forma menos grave que a de muitas outras pessoas, mas
massacrado... Também não quer dizer que a desgraça vivida por
pessoas consideradas mais desafortunadas que você não te afete, que
a tristeza delas em alguma escala não chegue também em você, que
não te deixe marcas...
As marcas estão
presentes nos olhares, nas respirações, nos encontrões que damos
pelas ruas, nos corpos caídos que vemos todo o tempo... são marcas
profundas e constroem os ombros e costas curvados, a dureza do
pescoço, o encurtamento dos músculos, o cansaço que por vezes
parece desproporcional se comparado ao que conseguimos realizar...
Dia-a-dia endurecemos e buscamos subterfúgios para o nosso
desalento em milhares de vícios, mais ou menos aceitáveis
socialmente, mais ou menos explícitos, mas todos construímos algum
jeito, algum momento de “não-olhar”...o “não-ver” é mais
uma marca, a ausência de si não faz as marcas desaparecerem... por
vezes até as aprofunda... há muita vida em cada pessoa e tão pouco
espaço para vivê-la! A vida apertada, esmagada pelo cotidiano, vira
a morte senil que nos ataca enquanto ainda estamos respirando
poluição e caminhando cegamente pelas ruas...
Hoje
compartilhamos um pouco do material de estudo que dá base a
construção cênica do trabalho em curso. No universo de pesquisa da
arte relacionada ao universo afro-brasileiro essa ação é
praticamente uma necessidade, uma vez que ainda há muita resistência
no meio acadêmico quando se trata de pesquisar, produzir e trazer ao
conhecimento do público a riqueza e complexidade da arte negra
brasileira, que em sua maioria das vezes é estereotipada como
atividade puramente instintiva que não merece um estudo aprofundado.
O documentário comprtilhado trata da história de Mercedes Baptista, a primeira
bailarina negra do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, é considerada
a principal precursora da dança afro-brasileira. Bailarina de
formação erudita, e a partir da criação de seu grupo, no início
da década de 1950, volta-se para o estudo dos movimentos
ritualísticos do candomblé e das danças folclóricas. Suas
criações coreográficas permanecem até hoje identificadas como
repertório gestual da dança afro.
Mercedes Ignácia da Silva Krieger,
nasceu em 1921 no município de Campos dos Goytacazes no Rio de
Janeiro, filha de João Baptista Ribeiro e Maria Ignácia da Silva,
uma família humilde que vivia do trabalho de sua mãe, que era
costureira. Ainda jovem, mudou-se para a cidade do Rio, exercendo
diversas atividades profissionais. Trabalhou em uma gráfica, em
fábrica de chapéus e foi empregada doméstica. Trabalhou, também,
em uma bilheteria de cinema, quando podia assistia aos filmes, neste
período acalentava o sonho dos palcos. Mobilizada por realizar seu
sonho, começou a dedicar-se a dança.
Mercedes Baptista foi iniciada
no balé clássico e na dança folclórica, pela grande Eros Volúsia
(bailarina que abrilhantou o Brasil através de suas coreografias
inspiradas na cultura brasileira). Durante o Estado Novo a política
cultural do ministro Gustavo Capanema valorizava a busca de uma arte
brasileira. O Brasil se transformava: órgãos públicos eram
especialmente criados para o fomento à cultura nacional, o Estado se
aparelhava para intervir na cultura. Era o caso do Serviço Nacional
do Teatro (SNT), criado expressamente para o fomento das artes
cênicas nacionais e que também abrigava uma escola de dança
dirigida por Eros, a primeira escola de dança freqüentada por
Mercedes Baptista.
Na década de 1940 ingressou na
Escola de Danças do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, tendo a
oportunidade de estudar com Maria Olenewa, Yuco Lindberg e Vaslav
Veltchek. No ano de 1947 torna-se a primeira mulher negra a ingressar
como bailarina profissional no Teatro Municipal do Rio de Janeiro. E
Embora fizesse parte do corpo de Baile do Teatro, teve poucas chances
de atuar, pois poucas vezes foi escalada para as apresentações. Em
entrevistas e bibliografias sobre a artista, ela declara ter sofrido
preconceito.
No mesmo período conhece Abdias
do Nascimento e o Teatro Experimental do Negro¹, do que pretendia
abrir espaço para o negro no teatro moderno, já que até então ele
estivera relegado a papeis secundários, de empregados serviçais, ou
de meros tipos populares, malandro, mulata faceira, baiana, etc,
passando a acompanhar seus ideais. Mercedes participou de diversos
eventos promovidos pelo TEN, sendo, em 1948, eleita a Rainha das
Mulatas. No ano de 1950, tornou-se membro do Conselho de Mulheres
Negras.
Em meados da década de 1950 foi
escolhida pela coreógrafa, antropóloga e militante afro-americana
Katherine Dunham para estudar dança nos Estados Unidos junto à sua
companhia, Mercedes se licencia temporariamente do Teatro Municipal e
viaja para Nova York onde passa aproximadamente um ano e meio, tendo
aulas de dança moderna, danças do Haiti e participou do processo de
luta pela valorização racial que era a especialidade de Katherine,
além de lecionar balé clássico para o grupo de bailarinos.
De volta ao Brasil, no fim de
1951, no Rio de Janeiro, funda o Ballet Folclórico Mercedes BaptistaGrupo formado por bailarinos negros que desenvolviam pesquisas
e divulgava a cultura negra e afro-brasileiras, introduzindo
elementos afro na dança moderna brasileira. O grupo ganhou
notoriedade e respeito, apresentaram-se na Europa e vários países
da América do Sul.
Desbravadora, em 1963, junto aos
carnavalescos Arlindo Rodrigues e Fernando Pamplona, introduziu, a
dança clássica no desfile da G.R.E.S Acadêmicos do Salgueiro, do
Rio de Janeiro. Mercedes Baptista foi a coreógrafa da Comissão de
Frente, que dançou o minueto, num cenário composto com a igreja da
Candelária ao fundo. O Salgueiro ganhou o carnaval, com um desfile
que se tornou referência, influenciando e mudando o rumo dos
desfiles das escolas de samba, pois foi ela quem idealizou as
apresentações das escolas com alas coreografadas. Essa novidade
trouxe notoriedade pública e Mercedes ainda coreografou para cinema,
televisão e teatro.
Ministrou diversos cursos fora
do Brasil - Nova York e Califórnia. Influenciou a dança em outros
países, mais também teve consistência e prestígio para introduzir
na Escola de Dança do Teatro Municipal do Rio de Janeiro a
disciplina dança afro-brasileira.
No ano de
2005 recebeu uma homenagem através da exposição “Mercedes
Baptista: a criação da identidade negra na dança”, com curadoria
de Paulo Melgaço e Jandira Lima. Em 2006 é lançado um documentário
sobre sua trajetória, intitulado, Balé de Pé no Chão - A dança
afro de Mercedes Baptista (que disponibilizo aqui) dirigido por
Lílian Sola Santiago e Marianna Monteiro. E em desdobramento a
exposição, foi lançado em 2007 o livro Mercedes Baptista: a
criação da identidade negra na dança, de autoria de Paulo Melgaço,
publicado pela Fundação Cultural Palmares.
Também recebeu, em 2008 homenagem
da G.R.E.S Acadêmicos do Cubango (grupo de acesso das Escolas de
Samba do Rio de Janeiro), sendo o tema do enredo, considerado um dos
sambas mais bonitos daquele ano. No ano seguinte a G.R.E.S Vila
Isabel, escolheu por tema o centenário do Teatro Municipal do Rio de
Janeiro, e por ser Mercedes Baptista uma figura emblemática da dança
nacional e referência obrigatória no Teatro recebeu merecida
homenagem.
Hoje aos 90 anos, é aposentada
pelo Teatro Municipal, não leciona mais, e vive no Rio de Janeiro.
Além de ter sido uma excelente
bailarina, seu principal legado é a valorização das culturas de
matrizes africanas e a introdução de elementos da dança afro à
dança moderna brasileira, e, sobretudo um exemplo de superação
para os negros.
Caros leitores, estamos
na ativa a algumas semana já, mas apenas hoje foi possível colocar
aqui um breve relato do que tem se passado com nosso projeto... Na
realidade foram muitos acontecimentos que necessitam postagens
específicas para serem expressos, mas por hora deixo um breve relato
com a promessa/dívida de destrinchar alguns dos fatos nas próximas
postagens...
Ensaio 7/7 - Foto: Abmael Henrique
Iniciamos nosso projeto
com uma visita às lideranças comunitárias de Taipas e região para
aprofundarmos as questões de abrangência das ações, além de nos
atualizarmos sobre as demandas locais, uma vez que nossa parceria com
o Instituto Viva Taipas já nos proporcionou muitas informações,
mas ainda assim a visita nos colocou a realidade local de maneira bem
palpável. Antes desta visita tínhamos como proposta de ação
efetiva em Taipas apenas as oficinas de dança, música e grafitti,
mais a apresentação do espetáculo, o processo de treinamento
artístico e construção do espetáculo se daria na Saúde onde
dispúnhamos de um espaço físico. No entanto, após visitarmos as
lideranças de Taipas, repensamos nossas ações buscando adaptá-las
as necessidades locais e deixá-las mais abrangentes também, pois a
região carece muito de ações culturais. Assim, ampliamos nossas
parcerias e passamos a contar com o espaço físico da G.R.C. Escola
de Samba Só vou se você for para ensaios e demais eventos do
projeto.
Há três semanas
estamos passando nossos domingos em Taipas ensaiando na Escola de
Samba de portas abertas, a comunidade já tem percebido o movimento e
começa a se envolver nas ações, no último ensaio tivemos a visita
ilustre de crianças curiosas que passeavam pela rua e prometeram
acompanhar bem de perto nossa trajetória.
Ensaio 30/06 - Foto: Moça que passeava com seu cachorro
No tocante a questões
artísticas do projeto também tivemos algumas transformações,
primeiro porque nos propusemos a olhar mais de perto a obra de
Suzart, e as observações nos tem trazido muitas questões corporais
e cênicas, entre elas o aprofundamento do estudo sobre as
manifestações brasileira de origem negra em suas particularidades
estéticas e técnicas, segundo porque estar em Taipas todo final de
semana ocupando a escola de samba que possui uma carga simbólica
considerável para a população local também nos traz a
possibilidade de uma construção cênica que realmente dialogue com
o local, e terceiro a população local tem se mostrado bastante
disposta em se envolver nas ações do projeto, o que pode nos trazer
um material dramatúrgico muito rico.
Ensaio 7/7
Por hora o que consigo
sintetizar para relato são essas ideias e nos próximos dias
desenvolverei algumas das questões expostas aqui, como por exemplo a
reflexão sobre a intensa visita aos líderes comunitários.